quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Em Trânsito: um ensaio sobre narrativas de viagem

Em Trânsito: um ensaio sobre narrativas de viagem, é o mais novo livro do jornalista gaúcho Renato Modernell.

O autor é a prova viva do trânsito literário. Já fez ficção, como Viagem ao Pavio da Vela (Record), entre outros, e também atuou no jornalismo, como editor de publicações de viagem, caso da Revista Terra.

Nos últimos anos, passou a escrever literatura, em suas palavras, em doses cada vez mais homeopáticas, e a dedicar-se prioritariamente ao ensino (é docente da Universidade Mackenzie) e à pesquisa. A presente obra, por exemplo, é sua tese de doutorado, defendida pela mesma instituição, agora disponibilizada no formato livro.

Neste lançamento, o autor transita pela literatura e pelo jornalismo por meio de três viajantes que relataram suas observações e impressões em livros: um jornalista, o americano Nick Tosches, e dois italianos, o escritor Antonio Tabucchi e o jornalista Tiziano Terzani.

O prefácio da obra, que pode ser lido abaixo, cedido gentilmente por Modernell, é escrito pelo professor Edvaldo Pereira Lima, ex-docente do programa de pós-graduação da Universidade de São Paulo. Lima é um dos pioneiros no país dos estudos de Jornalismo Literário, modalidade jornalística que tem nas narrativas de viagem um de seus gêneros.

Vale a pena a leitura da obra, inserida num segmento onde são poucas as reflexões teóricas sobre as narrativas de viagem. Aliás, um gênero que, como pontua Lima, é tão adequado e aberto à quem deseja ler e praticar narrativas de qualidade. 

Monica Martinez


Avaliação


**** Leitura Recomendável

Título: Em Trânsito: um ensaio sobre narrativas de viagem
Autor: Renato Modernell
Formato: 14 x 21 cm
Páginas: 165
Editora: Mackenzie
Onde comprar: na Livraria Mackenzie (campus Higienópolis/SP) ou por pedido direto ao distribuidor (tel. 11 3207 7099 e 0800 014 1963 ou e-mail cep@cep.org.br).

Prefácio

Viagens, textos, interfaces,
por Edvaldo Pereira Lima

As viagens têm um valor arquetípico. Especialmente as mais ousadas, para lugares distantes, de caráter exploratório. São uma força que move homens e mulheres de todos os tempos e de todas as partes a saírem da zona de conforto para se arriscarem na experiência do diferente, do estranho, do novo.

Viajantes desse quilate são movidos mais do que pela simples curiosidade. São impelidos por um movimento psíquico, profundo, que fazem um Richard Burton arriscar-se à degola, explorando sob disfarce a Meca reservada exclusivamente aos muçulmanos em peregrinação, proibidíssima aos infiéis. Que fazem um Amyr Klink abandonar o quase paraíso tropical de Parati para colocar a pele à dura prova nas geladíssimas águas solitárias da Antártica. Suas histórias são impulsionadas pelo motor interno da expansão da consciência, que alarga o alcance da nossa noção de quem somos, de quem é o outro, do que é o mundo, do que compõe esse oceano de diversidades de múltiplos níveis e dimensões onde estamos inexoravelmente imersos, como partículas supostamente inteligentes do grande mistério da existência.

Por isso as viagens ocupam um lugar tão privilegiado no imaginário de todos os povos. De todas as épocas. Por isso a origem e a força das narrativas de viagens.

A viagem é jornada. E a jornada é do herói. Há intensidade dramática, provas e desafios, no deslocamento do herói pelos seus mapas de aventura, o risco de aniquilamento pairando no ar como possibilidade remota ou probabilidade plausível. Cabe ao herói responder à demanda do seu santo graal particular no nível que lhe compete, sendo a jornada suprema a realização definitiva do seu Self, talvez, a reorganização da psique em torno do seu Eu transcendente, o ego domesticado ao seu papel importante, mas secundário.

Essa é a promessa camuflada, discretamente escondida nas dobras visíveis ou não das narrativas de viagens. O fascínio por elas começou há muito. Está nos livros sagrados. Moisés conduz seu povo pelo deserto e pelas águas abertas do mar, rumo à Terra Prometida (Bíblia). Está nas mitologias. Ulisses parte para a viagem épica de retorno ao lar, em Ítaca, dez anos de aventuras, depois dos não menos longos dez anos da guerra de Tróia (Odisséia).

Configurou-se como elemento cultural mais mundano, talvez, com a história do jovem veneziano que aos 17 anos parte para a longa epopeia pelas terras longínquas do Oriente. Depois de 24 anos de jornada, de regresso ao ponto de partida, plasma por escrito sua história, com a ajuda do escritor Rutischello de Pisa. As Viagens, de Marco Polo, torna-se o que se pode chamar de best-seller da era medieval europeia, se exercemos um pouco de imaginação adaptativa.

Em 1299, ano em que o livro é escrito, talvez, não existe ainda esse invento gráfico revolucionário, a imprensa, que só vai acontecer por volta de 1439, graças ao alemão Johannes Guttenberg. Mesmo assim, alcança o que se pode chamar de sucesso, no contexto da época. Depois da imprensa, As Viagens multiplica-se, cativando gerações. É de fato um dos maiores best-sellers também da história editorial moderna.

O fascínio duradouro de Marco Polo carrega a semente que todo bom editor de turismo e viagens do jornalismo moderno entende bem. Parte do público que consome as inúmeras publicações especializadas hoje existentes não tem condição de viajar para os destinos glamorosos que seduzem o olhar nas capas coloridas portando Dubai, Aspen ou os castelos de fadas nos contrafortes alemães. Mas consome o sonho. Viaja simbolicamente.

O editor do espanhol Álvaro Nuñes Cabeza de Vaca talvez já intuísse a essência desse fascínio, quando publica outro clássico de viagem importante de ser destacado, numa rápida linha do tempo da história do gênero. Em 1542 vem a público seu Naufrágio, relato da aventura pela qual passa quando seu navio a caminho do Novo Mundo afunda em tempestade terrível, lançando-o nas costas de uma terra desconhecida, em 1527. Pensa tratar-se de uma ilha. Descobre, em meio a sofrimentos de toda ordem, que na verdade está em uma grande massa de terra continental. Conseguindo relacionar-se com nativos, Cabeza de Vaca salva a pele passando-se por curandeiro.

A terra é o que identificamos hoje como a Flórida. Empreende então uma longa jornada exploratória terrestre, atravessando o sul dos Estados Unidos, rumo à costa oeste. Oito anos depois chega ao México, então território espanhol. Salvo, retorna à Espanha, notabilizando-se com seu livro, trampolim para outras aventuras, como a descoberta, para os olhos europeus, das cataratas de Iguaçu.

A expansão das narrativas de viagens continua nos séculos seguintes, ganhando contornos que as modernizam. No século XVIII, o escocês James Boswell marca um pioneirismo bem-sucedido. Até então, os textos de viagens são produzidos por exploradores, aventureiros, militares, sacerdotes, agentes civis das potências colonialistas europeias. São primeiramente personagens e testemunhas de histórias, escritores por acaso.

Boswell, porém, é o protótipo de outra estirpe: a de gente que viaja sem nenhum outro motivo a não ser explorar culturalmente novos cenários, e daí escrever sobre eles. Entre 1764 e 1765, Boswell sai do seu mundo insular, percorrendo o continente europeu. Dessa viagem resulta Ann account of Corsica, em 1768, que lhe dá a primeira instância de fama, pela crescente curiosidade inglesa pelo resto do mundo. Seu outro seu livro de viagem, Journal of a tour to the Hebrides, de 1785, também alcança sucesso.

Essas duas obras garantem-lhe também um lugar de honra na história dessa modalidade peculiar de jornalismo que combina a arte narrativa da literatura de prosa com o compromisso jornalístico em relação aos fatos reais: o Jornalismo Literário. Nada menos que Tom Wolfe, um dos seus grandes expoentes, atribui ao escocês o status de um dos predecessores da modalidade, e à narrativa de viagem uma das duas raízes históricas desse formato de expressão, em paralelo à cobertura de guerras.

Outros autores, em cada vez maior número, embarcariam nessa corrente de produção de narrativas não ficcionais de viagem. A tradição, renovada, chega aos nossos dias. Parte dessa produção pode ser considerada jornalismo literário de viagem, nome que atribuo a textos nitidamente marcados pelas características da modalidade, como a imersão, o estilo, a humanização, o emprego de recursos narrativos múltiplos, de um lado, mas atrelados ao compromisso de reprodução fiel da realidade, de outro. O autor que se preza, nessa categoria, não ficcionaliza eventos, cenas, personagens, falas.

Muitos dos grandes nomes do jornalismo literário praticariam a narrativa de viagem, como Jack London e George Orwell, mais distantes no tempo, Gabriel García Márquez, Joan Didion, Susan Orlean e Tiziano Terzani, em datas mais próximas de nossos dias.

A preferência é simples de se explicar: como a narrativa de viagem está associada ao imaginário popular mais metafórico e poético, menos linear e cartesiano, aceita-se com maior liberdade experimentos de estilo inconcebíveis no jornalismo cotidiano, o de hard news e informação noticiosa factual típica dos diários. Ao mesmo tempo, exatamente por essa expectativa favorável, o autor – especialmente o iniciante – de Jornalismo Literário pode lapidar seu talento em narrativas dessa natureza, antes de se dedicar a outros formatos – como a reportagem temática, o perfil – para os quais a tolerância ao desvio de padrões básicos é menor.

Outra linha de aproveitamento das viagens como eixo de abordagens narrativas cresceria com o tempo, especializando-se noutra direção, diferentemente do aproveitamento não ficcional.

A realização de viagens como elemento estratégico de produção ficcional parece ter alcançado consistência no século XIX, quando jovens aspirantes ao estrelato literário entenderam o potencial de sucesso reinante por trás delas. São dessa corrente os casos exemplares de Herman Melville, que em 1841 parte numa excursão de 18 meses a bordo de um navio baleeiro, experiência que lhe renderia a inspiração para seu clássico Moby Dick, e o de Joseph Conrad, que aproveitaria suas inúmeras incursões marítimas e fluviais como elementos para toda sua obra, com destaque para o clássico O coração das trevas.

Por essas duas direções clássicas das narrativas de viagens, prefiro referir-me a elas sob duas denominações identificadoras. As produzidas explicitamente como trabalhos de não ficção, no âmbito do jornalismo literário, chamo de jornalismo literário de viagem, como sinalizei antes. As ficcionais denomino simplesmente literatura de viagem.

Contudo, reconheço que as associações multidimensionais atreladas às viagens e por conseguinte as conexões algo difusas entre realidade e ficção, que podem ocorrer nos relatos, tornam o trabalho de classificação muito complexo, em algumas obras. Talvez essa complexidade esteja presente em livros de dois autores contemporâneos que contribuíram muito para a renovação da arte. Bruce Chatwin e Paul Theroux, ambos também ficcionistas, produziram monumentais obras não ficcionais, em essência, como O rastro dos cantos e O grande bazar ferroviário, respectivamente. Difícil é, porém, deduzir se há elementos ficcionais, leves que sejam. Onde está a fronteira entre a realidade e a fantasia? Questão espinhosa, pergunta inquietante.

Pois é esse um dos fios condutores subjacentes à oportuna reflexão de Renato Modernell, levando-nos para o universo da narrativa de viagem, tão pouco abordado no cenário acadêmico, no Brasil, em que pese sua importância. Aborda com elegância, uma pitada de humor e uma qualidade criativa bem-vinda, apropriada a um texto de estudo, a tarefa de colocar sob foco a interface entre jornalismo e literatura, presente nos relatos de viagens. Não se pode discutir esse ponto polêmico sem mirar também o par de opostos realidade/fantasia. Quem sabe, em algum nível, não são extremos de uma mesma onda interconectada para além das aparências?

A estratégia do autor consiste em debruçar-se sobre três obras de três autores distintos, representativos desse campo de possibilidades. Adicionalmente, pontuam a reflexão, aqui e ali, casos exemplares de outros autores, outras obras, no contexto da produção europeia, brasileira.

Completa o plano de ação o uso de metalinguagem. Pois em se tratando de um texto cujo centro é a viagem, nada como ser construído como tal. O convite é sedutor, tal como as mensagens da mídia que nos convidam para nos lançarmos mundo afora em busca de aventuras em destinos distantes. Aqui, a aventura é igualmente empolgante, mas de outra natureza. E o autor é o nosso guia de descobertas.

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Edvaldo Pereira Lima, professor da Universidade de São Paulo, cofundador da Academia Brasileira de Jornalismo Literário – www.abjl.org.br -, jornalista, escritor, considera-se cidadão do mundo, viajante por natureza. Residiu em vários países, foi editor de turismo e dentre as suas obras, produziu um livro de viagens sobre a Colômbia.