sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Ai de ti, São Luis

Não se vê carros antigos nem sem ar
condicionado em São Luís
Ulisses, o taxista, deixa o hotel localizado na Ponta da Areia levando sua passageira para o Aeroporto Internacional Marechal Cunha Machado. É quarta-feira, já passou das 23h e ele está com os vidros bem fechados.
São dois os motivos. O primeiro é para que o ar condicionado funcione bem. Na quente ilha de São Luis, a capital do Estado, não se vê carros muito antigos, e ar condicionado no veículo não é considerado item opcional. Nem nas casas ou estabelecimentos comerciais.

A segunda razão é por segurança. Estamos numa área nova, que abriga as redes hoteleiras e prédios com apartamentos à venda por cifras que, dois dias antes o guia de turismo Darfan havia avisado estarem na faixa de um a cinco milhões de reais. O curioso é que o uso da bela praia em frente é desaconselhado por todos. O motivo: ao se propor a expansão da região, esqueceu-se dos necessários emissários submarinos – a água do mar é poluída e meu maiô volta intocado para a mala.

O preço dos apartamentos é uma cifra espantosa para qualquer estado, mesmo este que é considerado o quarto mais rico do Nordeste, mas que, ao mesmo tempo, apresenta desigualdade social gritante: seis em cada dez habitantes são pobres. Muitos deles, aliás, moram na comunidade situada logo atrás da linha dos hotéis, chamada de Ilhinha. Duas ou três vezes a passageira já havia ouvido a frase de bocas diferentes:

— Nem entregadores de refrigerante ou de cigarro entram lá sem aviso —. Na dúvida, para ir às reuniões no prédio que dista uma quadra, e devidamente orientados por zelosos recepcionistas, taxistas e moradores locais, tomamos táxis em vez de fazer uma agradável caminhada pela orla marítima.

Aliás, entre estes entregadores precavidos estão o do gostoso, cor-de-rosa e popular guaraná Jesus, que os marenhenses orgulham-se de dizer que vende mais do que Coca Cola. O nome não é uma homenagem ao Cristo. Antes, ele foi criado pelo farmacêutico Jesus Norberto Gomes, que não somente era ateu como chegou a ser excomungado por conta do empreendimento tido como herético. Recentemente, e para horror de muitos fãs que acham que o Jesus não é mais o mesmo, a marca foi adquirida pela Coca Cola, aparentemente numa ação maquiavélica para deter o popular refrigerante dentro nas fronteiras do Estado.

Ulisses, o taxista, aponta a Ilhinha à nossa frente e pisa fundo o pé no acelerador. Passamos pelo bairro da Liberdade, criado na época da libertação para acomodar os escravos forros, sem trabalho nem assistência governamental para se instalar na vida, hoje não por acaso um conglomerado de casas populares com portas e janelas protegidos por grades grossas.

Passamos pela lagoa Ana Jansen, uma homenagem a mulher forte que viveu no século 17. Sua história é muito parecida com a de dona Beja , esta de Araxá, Minas Gerais. Ana era uma mãe solteira que, para manter o filho e a mãe, torna-se amante do homem mais rico da província, coronel Izidoro Rodrigues Pereira. Com a morte da esposa dele, quinze anos depois, seguida da do coronel, ela fica independe e poderosa. Ao que parece, graças ao seu tino comercial e suas habilidades de liderança, Ana ocupa espaço político e passa a ser conhecida como a Rainha do Maranhão. Há fofocas sobre as relações que ela manteria com escravos, que teriam produzido alguns de seus filhos – fofocas que ela cortava pela raiz ao mandar matar, ou, ao menos, mutilar seus ex-amantes para que não dessem com a língua nos dentes. Depois de horrorizar a elite local, hoje ela aterroriza o imaginário local — agora na figura de uma bruxa que percorre o centro dando velas amaldiçoadas para incautos.


Alto relevo do Fórum: dizem que aqui
a justiça não é cega nem equilibrada
O centro supostamente percorrido pela carruagem de Jansen e seus ex-escravos é um dos locais mais interessantes do Maranhão, Estado que já mudou muito de dono até que, dizem as más línguas nativas, a oligarquia dos Sarney se instalasse no poder. No início a terra foi dos espanhóis, seguida dos franceses – a cidade de São Luis foi por eles fundada em 1612.

A mistura resultante lembra bastante Nova Orleans, no sul dos Estados Unidos, que também foi disputada por espanhóis e franceses. Uma das diferenças mais visíveis é a de que na cidade estadunidense há uma praça quadrada central de onde partem planejadamente as ruas, enquanto na São Luis elas se distribuem ao sabor das colinas, como pedia mais tarde a arquitetura portuguesa.


De semelhante, Nova Orleans e São Luis possuem as belas grades de janela em ferro fundido e as casas que principiam na beira da calçada estreita. Ambas cidades também têm referências ao rei francês da época, Louis 13. Em Nova Orleans a igreja católica que fica à beira da praça leva seu nome, Saint Louis. Já na bela Catedral Metropolitana da Sé – que foi construída de 1619 a 1699 – há uma imagem de São Luis no altar.


São Luís: homenagem
ao rei francês Louis 13
Como em outros locais do nordeste brasileiro, os holandeses também tiveram seu tempo de ocupação na cidade, em 1641. Aparentemente não deixaram saudades nem muitos descendentes – há pouca gente com olhos claros circulando pelas ruas –, uma vez que foram expulsos apenas três anos depois pelos colonos portugueses. Hoje, contudo, a Avenida dos Holandeses é uma longa avenida em sua homenagem.


Já a herança portuguesa fica bem à mostra nas paredes azulejadas dos casarões do centro histórico. Não por acaso, em 1997, a cidade foi tombada como patrimônio histórico pela Unesco. Mas, é preciso dizer, investimentos para recuperação são necessários, pois basta percorrer algumas das ruas estreitas fora do perímetro central para perceber o estado de deterioração em que se encontram muitos dos imóveis.

Vale destacar que as lojinhas do centro histórico possuem artesanato criativo e bem feito, sobretudo as bolsas de palha de buriti feitas em Barreirinhas (leia-se a cidade dos Lençóis Maranhenses para os de fora do Estado), com preço honesto e qualidade. Mas talvez o bem mais precioso seja os maranhenses em si, cordiais e sempre prontos a trocar um dedo de prosa. Prosa que atinge seu ápice no mercado, com suas cestarias repletas de camarões secos, com seus doces de buriti e suas castanhas bem torradas.

As frutas locais: o mercado é uma
festa de cores e aromas
Aliás, em São Luis se come muitíssimo bem, qualquer que seja a quantia no bolso. No próprio mercado, por exemplo, uma refeição com peixe, arroz, saladinha e, claro, a farinha grossa e crocante, sai por R$ 10, com direito a uma garrafinha vazia de um litro de coca-cola cheia de água geladinha – saudável hábito que lembra o dos bistrôs franceses. No centro também há o restaurante Senac – ótimo na avaliação dos que lá vão.

Arroz de cuxá (feito com uma erva local, a vinagreira, à venda no mercado), patinhas de caranguejo, carne de sol, peixes deliciosos, baião de dois, macaxera frita, dê o nome – trata-se de comida forte, com sustança, bem temperada e farta.


Em direção ao aeroporto, passamos pela ponte José Sarney, construída no final do governo do político escritor em 1970. O taxista Ulisses logo começa a falar de política. Falar mal dos Sarney, aqui, é uma paixão estadual. Todos, absolutamente todos, fazem questão de lembrar que o atual presidente do Senado, José Sarney (1930-), é eleito pelo Amapá (PMDB) e não pelo Maranhão. Curiosamente, apesar de ninguém confessar ter votado em sua filha, Roseana (hoje PMDB) foi eleita governadora pela quarta vez no Estado, ocupando seu espaço residencial no lado esquerdo do belo Palácio dos Leões, que abriga o governo desde 1775. Na boca do povo, contudo, ela é tida como alguém que não é perfeita, mas que faz.

Chegamos finalmente ao aeroporto. O atendente da companhia aérea sugere subir logo para a área de embarque.

— Aqui embaixo é muito desconfortável, parece mais uma rodoviária — ele diz, quase como se se desculpando. O comentário me faz olhar para o teto, feito de placas de alumínio. De fato não me recordo de outro aeroporto assim construído – e olhe que já viajei pelo país.

— Além disso, lá encima tem ar condicionado — ele completa. Ar refrigerado, mesmo nesta terra com tanta brisa natural, é um símbolo poderoso de status. Não há como discutir. Pego a mala de mão, a sacola com as bolsas de palha de buriti e meu pacote de garrafinhas de guaraná Jesus e sigo obediente para a área de embarque.

Monica Martinez