terça-feira, 25 de agosto de 2009

Projeto Missões - Parte 5: uma cidade que cortou suas raízes

— Por que não roubam moto de japonês? — pergunta Marcos, arregalando suavemente os olhos orientais.

Na primeira vez que a piada foi contada, na viagem para o Rio Grande do Sul, todos se entreolharam discretamente. Descendente de japonês teria isenção diplomática para contar piadas politicamente incorretas?

Agora que todos já estão acostumados com a seriedade de Marcos, o deleite é geral e visível na hora das pegadinhas.

— Por que japonês compra Yamaha — diz Marcos, separando bem o Y do Amaha, o que faz o nome da empresa soar como “e... amarra”. Outras piadas serão contadas, mas nenhuma agradará mais que esta, que sempre é solicitada durante as rodadas.

Depois do almoço, e ainda acompanhados de Nadir, seguimos para Santo Ângelo, antiga redução jesuítica que fica a 65 quilômetros de São Miguel das Missões. O ar histórico, aqui, se perdeu.

A cidade tem 77 500 habitantes que descendem de portugueses e, mais recentemente, de outros povos imigrantes europeus e, ainda mais recentemente, paulistas e paranaenses, que começaram a repovoar a área a partir de 1828 sob ordens do general Gomes Freire de Andrade, que tinha como objetivo impedir o retorno dos indígenas à área.

Não é, portanto, por acaso que não resta pedra sobre pedra das construções jesuíticas, nem orgulho de suas raízes – o que Nadir lamenta muito. Aliás, ela explica que as casas mais antigas foram construídas com esse material. É justamente o caso do Museu Doutor José Olavo de Machado, construção do século 19 que recebe o grupo graças a um acordo prévio com a expedição, embora seja uma segunda-feira, dia em que o local é fechado para visitação. No interior do museu, uma maquete permite visualizar os dias de glória do local, quando o guarani era o idioma oficial — embora ele ainda componha 20% do que o brasileiro fala segundo Nadir.

Fotos e texto: Monica Martinez

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Projeto Missões - Parte 4: vinhos orgânicos


Três pontos são fundamentais para o agroturismo: a herança cultural (oferecer algo que está entranhado nas raízes do lugar ou da família), a atenção com o meio ambiente e... a gastronomia. Essa lição, ensinada por Leandro Carnielli, pequeno proprietário de Venda Nova do Imigrante e presidente da Agrotures (Associação de Agroturismo do Estado do Espírito Santo), se aplica com perfeição à Vinícola Fin, localizada na altura do quilômetro 508 da Rodovia BR 285, no município de Entre-Ijuisa, a 38 quilômetros de São Miguel das Missões.

Nesse 13 de agosto, felizmente uma segunda-feira, à porta do estabelecimento está o proprietário Jorge Fin, que à semelhança de Carnielli é descendente de italianos da região do Vêneto. As paredes do local estão cobertas com fotografias antigas, uma das quais do avô Luigi, que chegou em 1876 vindo da comuna de Arzignano.

Seis hectares plantados de videiras, na região até pouco tempo dominada pela soja, envolvem o recinto onde ele produz vinhos finos e de mesa em imensas pipas de aço inoxidável, tirando proveito do fato de que as uvas ali são colhidas 40 dias antes das serras gaúchas. Jorge deixou uma segura carreira na área de marketing de um banco para empreender o negócio, resgatando a viticultura praticada por seus antepassados.

Enquanto os participantes da expedição degustam com prazer os diferentes tipos de vinhos, acompanhados por copa, queijo, salame e pão produzidos na propriedade, ele fala com evidente orgulho da ótima safra de 22 graus de açúcar de 2009, resultado de 90 dias de sol sem chuva na época da colheita. Graças a essa providência divina, vinhos como o Ancellota, de coloração vermelho rubi intenso e aroma frutado de amora, cereja, com notas de amêndoa, caramelo e café torrado, poderão amaciar seus taninos e envelhecer com calma.

Lá fora, as videiras já podadas estão prestes a serem amarradas com vime para ficarem firmes para a brotação de folhas que começará na primavera. Esse é apenas um dos cuidados da plantação biodinâmica, um método orgânico inspirado no filósofo austríaco Rudolf Steiner (1861-1925) conhecido pelo respeito ao meio ambiente.

De cabelos loiros curtos e um eterno sorrido nos lábios, Jorge alerta os comensais para guardarem um espaço para o almoço. Quem o está providenciando pessoalmente é sua esposa, Eliana. Pequena e magrinha, ela transita pelo espaço com a leveza de uma fada e logo oferece um delicioso cappeleti in brodo, caldo que cozinhou lentamente por oito horas. Seguem-se pasta verde e galinha criada no milho, regados a pão caseiro e, para finalizar, uma seleção de doces feitos na propriedade, como o imperdível sagu cozido no suco de uva da casa.

Ao final do banquete, as pessoas circulam espontaneamente pelo local, como se estivessem na casa de um parente querido. O estudante de Letras da Universidade de São Paulo, Ivan Pasta Zanni, 23, com mais de 1m70, magro, de traços finos e sempre pronto a fazer comentários gentis aos integrantes da expedição, observa tranquilamente o lago com seu pedalinho atracado na margem. Ivan viaja com o irmão, Vítor, 20, aluno do curso de Química da USP e a mãe, a historiadora Iara.

Na hora da saída, Jorge lamenta que não teve tempo de engarrafar a safra de grapa, a aguardente feita de uva. Felizmente os produtos podem ser adquiridos pelo site http://www.vinicolafin.com.br.

Fotos e texto: Monica Martinez

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Projeto Missões - Parte 3: São Miguel das Missões

Após o café da manhã no Wilson Park Hotel, os integrantes da expedição embarcam no ônibus com destino ao sítio arqueológico de São Miguel Arcanjo. Como o local não fica distante, algumas pessoas decidem caminhar até lá, chegando à entrada quase ao mesmo tempo em que as demais descem do veículo.

O sítio é tombado desde 1983 pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade. Da entrada se vê o Museu das Missões, pequena construção idealizada pelo arquiteto Lúcio Costa para abrigar as imagens sacras feitas pelos guaranis.

Em frente ao museu, uma cena de tirar o fôlego: as ruínas de São Miguel. A parte frontal ainda está preservada, permitindo desfrutar a grandiosidade da igreja construída de 1735 e 1745. O resto da redução tem de ser imaginado a partir das plantas conservadas no museu e das imagens que a guia construirá com palavras.

Como as demais, essa missão foi construída sob orientações dos jesuítas, ordem religiosa fundada em 1534 pelo basco Inácio de Loyola.

Antes de se tornar religioso, Loyola tinha sido militar e sua ordem primou pela organização e obediência à hierarquia. A Companhia de Jesus logo atrai um pelotão de padres devotados à glória divina, opositores da escravidão e incentivadores dos estudos e das artes. A cruz missioneira postada em frente ao museu remete à união simbólica entre a espada e a fé cristã.

Os jesuítas se espalharam pelo mundo. Alguns, como Francisco Xavier, nunca chegaram ao seu destino, a China. Outros tiveram melhor sorte, como o padre Cristovão de Mendonça, que em 1632 fundou São Miguel, a primeira missão jesuítica no que hoje é a área do Mercosul. Seguiram-se seis outras: São Francisco de Borja, São Nicolau, São Luiz Gonzaga, seguidas de São João Baptista, São Lourenço Mártir e Santo Ângelo Custódio, formando os chamados Sete Povos das Missões.

Rodeada dos integrantes da expedição, a professora de história da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Nadir Damiani, explica que os aldeamentos, construídos a partir de plantas feitas pelo jesuíta e arquiteto Gian Battista Primoli, eram muito semelhantes.

A igreja ficava no coração da planta. Ao lado direito dela erguiam-se casas para viúvas, órfãos com menos de 7 anos e “solteironas” com mais de 15 anos, que eram amparadas pela comunidade. Do lado esquerdo, as salas de aula da escola (20 alunos por classe, formada apenas por meninos), a casa dos padres e as oficinas. A música era muito incentivada e a orquestra local chegou tocar em Madri. Logo atrás da igreja ficavam a horta e o pomar. Havia frutas em abundância: laranjas, figos, romãs – então um símbolo de prosperidade.

Nadir aponta para a grande praça quadrada gramada que se vê em frente à igreja. “Ela abrigava festas religiosas, peças e jogos esportivos”, explica a historiadora. Ao redor da praça ficavam as habitações, construções sólidas em pedra de arenito como a igreja e demais edifícios. Cada redução abrigava até 6.500 habitantes (só para se ter uma ideia, a cidade de São Miguel das Missões de hoje possui 7.500 moradores).

A comunidade era auto-sustentável e próspera: os povos das missões plantavam erva-mate, milho, mandioca, batata, frutas, legumes, fumo, algodão, produzia mel, vinho de uva e de laranja. Os índios fiavam e teciam o algodão. Criavam gado, processando o couro, o sebo, fazendo botões, pentes e cabos de armas dos chifres. A moeda praticamente não existia e as trocas eram feitas em mercadorias. O excedente que não era consumido era usado para pagar os impostos à coroa espanhola e usado no escambo por artigos não produzidos localmente, como agulhas e livros. O que sobrava era dividido entre os moradores.

De cabelos curtos cor de cobre e traços decididos, Nadir chegou a São Miguel há 28 anos para estudar. Nunca mais deixou o lugar. A coordenadora do Centro de Cultura Missioneira devotou sua vida ao tema e fala apaixonadamente sobre o sistema político que envolvia a igreja que se ergue imponente ao fundo da praça. Ela aponta o museu. “Lá ficava o Cabildo, a sede administrativa da redução, uma espécie de prefeitura cuja gestão era feita pelos índios”, diz.

Passar pela sua porta principal da igreja é voltar ao século 17, quando o território era espanhol devido ao Tratado de Tordesilhas. Para ocupá-lo e catequisar os guaranis da bacia do Prata, padres jesuítas ergueram ao longo dos séculos 30 reduções.

Nadir é ativa na ajuda aos guaranis remanescentes do Estado, alguns dos quais vendem ao redor do museu seu belo artesanato, como as esculturas em madeira de quatis típicas da região. Silenciosos e com blusas de frio que já viram épocas melhores, eles são a triste herança da guerra guaranítica iniciada pouco depois do Tratado de Madri, de 1750, quando Portugal reclamou as terras para si. Só as terras, sem os padres nem os índios nelas.

O brado do líder guarani, Sepé Tiaraju, “essa terra tem dono”, não foi suficiente para espantar as tropas luso-espanholas. Nem o grito dos 30 mil índios que viviam nos Sete Povos. O espetáculo Som e Luz, exibido diariamente às 19h (no verão às 21h) desde 1978, permite intuir o massacre sofrido pelas populações que habitavam o local. Mais explícito e igualmente belo, o filme hollywoodiano As Missões, de 1986, com Jeremy Irons e Robert de Niro, também.

Ao fim do espetáculo de 40 minutos, os integrantes da expedição caminham silenciosamente de volta para o ônibus. As palavras são desnecessárias.

Fotos e texto: Monica Martinez

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Projeto Missões - Parte 2: Uma viagem gastronômica pelo sul


O sono é suave na primeira noite passada no embalo do ônibus que segue para Curitiba pela BR-116. Tanto que muitos passageiros nem notam a parada feita durante a madrugada. Mas ninguém perde o farto café da manhã no restaurante Américan Grill, em União da Vitória (já distante 233 quilômetros da capital do Paraná. É ali que conhecemos pela primeira vez um docinho típico da região de nome curioso. Trata-se de uma tira de massa frita açucarada levemente torcida chamada de... cueca-virada.

Pelas janelas do ônibus, ainda bastante embaçadas pela neblina, o cenário muda aos poucos: as verdejantes colinas do Estado de Santa Catarina vão dando espaço aos campos conforme chegamos a um ensolarado Rio Grande do Sul pela BR-135. Uma surpresa nos aguarda para o almoço: o restaurante Tia Lili, na cidade de Marcelino Ramos.

Correndo de um lado para outro, tia Lili atende pessoalmente os clientes habituais e também os paulistas forasteiros. “Sou filha de italianos e franceses”, explica, enquanto passa oferecendo polenta frita cremosa e fortaia, omelete de queijo de origem italiana. A mesa é farta, com vários tipos de salada, arroz, feijão e massas. À parte, um bufê de assados tenros e a fantástica abóbora consumida localmente, que é deixada de molho na água e açúcar, fervida no dia seguinte e, finalmente, assada – o que a deixa com uma camada externa crocante e o interior macio.

Mas o destaque do restaurante Tia Lili é uma salinha à parte, com doces caseiros de todos os tipos imagináveis, uma união feliz entre as tradições italiana, alemã e portuguesa. Ambrosia, apfelstrudel de variados tipos, pudins... Quitutes que fazem o professor José Eugenio de Oliveira Menezes arregalar os olhos de satisfação. É apenas o começo de uma jornada gastronômica que levará muitos dos integrantes da expedição a trazer vários quilos a mais para São Paulo.

Ao cair da noite, a chegada a São Miguel das Missões é tranqüila. O caminho até a entrada do grandioso Wilson Park Hotel é charmosamente iluminado. Todos os quartos ficam num primeiro andar que pode ser alcançado por uma rampa suave. Pela primeira vez nota-se a determinação de um descendente de japoneses nascido em 1928, Koumei Mitsuzawa, que, aos 81 anos, anda para lá e para cá com sua incansável bengala e será motivo de inspiração para os mais jovens antes de se queixarem de uma dor aqui ou outra acolá.

Dentista concursado e um bom contador de piadas, seu Koumei trabalhou na Caixa Econômica Federal até se aposentar, numa época em que tais cargos eram motivo de orgulho e praticados com honra e ética, como deve ser.

Texto e foto: Monica Martinez