domingo, 31 de julho de 2011

Narrativa de viagem à italiana

Sardenha como uma Infância, do italiano Elio Vittorini (1908-1966), não é um livro sedutor, daqueles que impressionam à primeira vista. Aliás, por ser da editora Cosac Naify, pode-se até dizer que é uma obra despojada. São 128 páginas, apenas quatro delas ilustradas com fotografias antigas em preto e branco.


Começa-se a leitura sem grandes expectativas, até porque a estrutura de 43 capítulos pequenos – inovadora quando ela foi escrita, em 1932-1933 – flue familiar aos olhos do leitor contemporâneo, acostumado aos relatos curtos da internet.

A partir daí, o livro realiza, diante de nossos olhos arregalados, aquele prodígio da transmutação reservado a atores excepcionais. Vistos de perto, são pequenos, mas, observados no palco ou nas telas, crescem enormemente.

A obra é uma narrativa de viagem, publicada na coleção Companheiro de Viagem. Nela, o escritor siciliano comenta de forma aparentemente despretensiosa sua viagem por outra ilha da bota, a Sardenha. Suas descrições são sintéticas, suas impressões acuradas, sua escrita impecável. Veja esta frase sobre a ilha:

“Mas é sobretudo Sardenha: por esta solidão em cada coisa, em cada penhasco que parece fechado em si mesmo, meditando, e em cada árvore ou viandante que se encontra, e por esta luz, e por este cheiro de rebanhos a caminho, bem para lá do horizonte”.

Na dúvida, para não perder nenhuma pérola, você pega um lápis e começa a sublinhar uma e outra passagem e, quando vê, está com o livro todo rabiscado. Afinal, a linguagem é um misto de prosa e poesia, usada para revelar a ilha e seus personagens com olhos encantados, curiosos, prazerosos. Há a sensação de que o narrador descobre universos de uma forma mais profunda até do que se o próprio leitor estivesse na ilha – e a vontade é a de continuar vendo-a por meio deste olho mágico.

Há um trecho particularmente interessante, sobretudo para quem aprecia vinhos. Trata-se de “Os sobreiros”, sobre a árvore cuja casca retirada serve para fazer rolhas.

“Parecem oliveiras, de folhagem um pouco mais pálida, um pouco mais crespa, mas têm troncos que sangram. Da base até precisamente a ramificação dos primeiros galhos, toda a cortiça foi extraída. Restou o tronco vivo. Em alguns casos, de um vermelho dourado; em outros, como couro curtido. Outros ainda, sob a ação do sol, adquiriram uma coloração violácea. Os mais velhos, descortiçados no ano anterior, se recobriram de um musgo azulado. Mas não há nenhum intacto. Até as árvores mais jovens, de corpo fino, mostram um pé sangrento. Estranho como se parecem vivos estes cortes! Vem o pensamento espontâneo: pobres animais...”.

Aí a gente para e se pergunta: porque não há mais textos assim no jornalismo contemporâneo de viagens,  onde em boa parte das matérias se sente que, apesar do repórter ter estado de corpo presente, o texto é vazio de alma, como se o olhar curioso e atento do profissional estivesse a léguas de distância. O resultado: textos pasteurizados, sem vida, que são esquecidos mal finda a leitura.

Do ponto de vista histórico, pode-se dizer que a obra é o canto de cisne de um mundo que estava em ocaso. Em 1932-33, a Itália vivia sob o regime fascista de Benito Mussolini, o Partido Nacional Socialista alemão se fortalecia e pouco depois se deflagraria a sangrenta Segunda Guerra Mundial.

Não, a obra não é sedutora, daquelas que derrubam com um gesto. Antes ela é cativante, daquele tipo que envolve aos poucos até que você não consegue mais viver sem ela, que se quer ter por perto na estante para consultar sempre. Como é mesmo que Vittorini descreveu uma ilha? Ah! “Sardenha é uma verdadeira ilha, encapsulada em seu esplendor e suas tempestades”.

Ficha técnica

Avaliação
***** Leitura Imperdível

Título: Sardenha como uma Infância
Autor: Elio Vittorini
Tradução: Maurício Santana Dias
Formato: 15,5 x 19 cm
Páginas: 128.
Ilustrações: 4

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