quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Mama África na visão de Karen Blixen

Confesso que não me apaixonei quando vi o filme Entre Dois Amores, de Sydney Pollack (1985), mesmo que ele tivesse atores do quilate de Meryl Streep, Robert Redfor e Klaus Maria Brandauer.

Do pouco que me lembro, tratava-se da história de uma baronesa dinamarquesa entediada, seu marido -- um aristocrata dinamarquês caladão pouco afeito a pegar no pesado e fã de safaris -- e o amante deka -- um aristocrata inglês comedido nas palavras pouco afeito a pegar no pesado e fã de safaris. A trama da europeia que tinha de assumir a coordenação da lida na fazenda tinha como pano de fundo as fantásticas paisagens quenianas, daquelas que os olhos alcançam tão longe que dá a sensação de se estar no próximo do mar.

Contudo, me apaixonei perdidamente pelo livro que deu origem à película, publicado pela dinamarquesa Karen Blixen (1885-1962) em 1937. A obra, felizmente, não se limita à trama amorosa entre a escritora, seu marido -- o barão sueco Bror von Blixen-Finecke, de quem se divorciou em 1925 --, e seu amante, o piloto do exército britânico e caçador profissional Denys Finch Hatton, com quem viveu de 1926 até a morte dele num acidente aéreo, em 1931.

Ao contrário. Se não me falha a memória, o nome de Bror sequer é citado pela autora, mais conhecida pelo pseudônimo de Isak Dinesen. Já os últimos dias de Finch Hatton ganham um ótimo capítulo no livro.

O que se revela diante de nossos olhos é, antes, um relato antropológico amoroso e arguto sobre os quicuios, os massais e os somalis, isto é, os povos nativos, mas também sobre os europeus que lá estão. O ponto de vista da autora, felizmente, não é o eurocêntrico, mas, antes, uma tentativa aberta de comprender as diferentes formas de ver o mundo.

Só isto já valeria a leitura. Mas há mais. Blixen escreve muito, muito bem. Compartilho um dos trechos que mais me encantaram no qual, sem mencionar a morte da cultura que ocorria diante de seus olhos, ela faz justamente esta reflexão simbólica ao relatar o funeral de um chefe quicuio:


Tradicionalmente, os quicuios não enterram seus mortos e preferem deixá-los sobre o solo, para que sejam devorados pelas hienas e pelos abutres. Tal costume sempre me encantara, pois imaginava que seria muito agradável ser colocada sob o sol e as estrelas e, depois, ter os ossos completamente descarnados e limpos com rapidez e precisão. Era um modo de nos fundirmos na natureza e virarmos mais um dos elementos comuns de uma paisagem. (...)

Kinanjui, porém, (...) seria sepultado. Achei que os quicuios haviam concordado em abrir uma exceção à sua regra pelo fato de o morto ter sido chefe. Talvez estivessem preparando, para a ocasião, uma grande reunião ou cerimônia tradicional. (...)

No entanto, o funeral de Kinanjui foi uma cerimônia completamente européia e eclesiástica. Ela contou com a presença de representantes do governo, com o comissário distrital e duas autoridades vindas de Nairóbi. Mas o dia e o local foram dominados por religiosos, e a planície, sob o sol vespertino, ficou pontilhada com suas vestes escuras. (...)  Se a intenção (...) era impressionar os quicuios com o sentimento de que ali haviam conquistado o falecido chefe, elas foram bem-sucedidas. (...)

O corpo de Kinanjui foi trazido da missão numa camionete, e colocado ao lado da sepultura. Não creio que, em toda a minha vida, eu tenha ficado mais decepcionada e chocada do que no momento em que o vi. Ele fora um homem corpulento, e eu me lembrava dele tal como o vira tantas vezes (...). Mas o caixão onde fora colocado era quase uma caixa quadrada, que certamente não media mais do que um metro e meio. (...) como será que haviam conseguido enfiar Kinanjui ali e como estava acomodado? (BLIXEN, 2005, p. 383-384).


A tradução de Cláudio Marcondes, felizmente, faz juz à obra.


Avaliação

***** Leitura Altamente Recomendável

Título: A Fazenda Africana
Autor: Karen Blixen
Tradução: Cláudio Marcondes
Formato: 227 x 164 x 28 mm;
Páginas:  448
Editora: Cosac Naify

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