terça-feira, 11 de agosto de 2009

Projeto Missões - Parte 3: São Miguel das Missões

Após o café da manhã no Wilson Park Hotel, os integrantes da expedição embarcam no ônibus com destino ao sítio arqueológico de São Miguel Arcanjo. Como o local não fica distante, algumas pessoas decidem caminhar até lá, chegando à entrada quase ao mesmo tempo em que as demais descem do veículo.

O sítio é tombado desde 1983 pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade. Da entrada se vê o Museu das Missões, pequena construção idealizada pelo arquiteto Lúcio Costa para abrigar as imagens sacras feitas pelos guaranis.

Em frente ao museu, uma cena de tirar o fôlego: as ruínas de São Miguel. A parte frontal ainda está preservada, permitindo desfrutar a grandiosidade da igreja construída de 1735 e 1745. O resto da redução tem de ser imaginado a partir das plantas conservadas no museu e das imagens que a guia construirá com palavras.

Como as demais, essa missão foi construída sob orientações dos jesuítas, ordem religiosa fundada em 1534 pelo basco Inácio de Loyola.

Antes de se tornar religioso, Loyola tinha sido militar e sua ordem primou pela organização e obediência à hierarquia. A Companhia de Jesus logo atrai um pelotão de padres devotados à glória divina, opositores da escravidão e incentivadores dos estudos e das artes. A cruz missioneira postada em frente ao museu remete à união simbólica entre a espada e a fé cristã.

Os jesuítas se espalharam pelo mundo. Alguns, como Francisco Xavier, nunca chegaram ao seu destino, a China. Outros tiveram melhor sorte, como o padre Cristovão de Mendonça, que em 1632 fundou São Miguel, a primeira missão jesuítica no que hoje é a área do Mercosul. Seguiram-se seis outras: São Francisco de Borja, São Nicolau, São Luiz Gonzaga, seguidas de São João Baptista, São Lourenço Mártir e Santo Ângelo Custódio, formando os chamados Sete Povos das Missões.

Rodeada dos integrantes da expedição, a professora de história da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Nadir Damiani, explica que os aldeamentos, construídos a partir de plantas feitas pelo jesuíta e arquiteto Gian Battista Primoli, eram muito semelhantes.

A igreja ficava no coração da planta. Ao lado direito dela erguiam-se casas para viúvas, órfãos com menos de 7 anos e “solteironas” com mais de 15 anos, que eram amparadas pela comunidade. Do lado esquerdo, as salas de aula da escola (20 alunos por classe, formada apenas por meninos), a casa dos padres e as oficinas. A música era muito incentivada e a orquestra local chegou tocar em Madri. Logo atrás da igreja ficavam a horta e o pomar. Havia frutas em abundância: laranjas, figos, romãs – então um símbolo de prosperidade.

Nadir aponta para a grande praça quadrada gramada que se vê em frente à igreja. “Ela abrigava festas religiosas, peças e jogos esportivos”, explica a historiadora. Ao redor da praça ficavam as habitações, construções sólidas em pedra de arenito como a igreja e demais edifícios. Cada redução abrigava até 6.500 habitantes (só para se ter uma ideia, a cidade de São Miguel das Missões de hoje possui 7.500 moradores).

A comunidade era auto-sustentável e próspera: os povos das missões plantavam erva-mate, milho, mandioca, batata, frutas, legumes, fumo, algodão, produzia mel, vinho de uva e de laranja. Os índios fiavam e teciam o algodão. Criavam gado, processando o couro, o sebo, fazendo botões, pentes e cabos de armas dos chifres. A moeda praticamente não existia e as trocas eram feitas em mercadorias. O excedente que não era consumido era usado para pagar os impostos à coroa espanhola e usado no escambo por artigos não produzidos localmente, como agulhas e livros. O que sobrava era dividido entre os moradores.

De cabelos curtos cor de cobre e traços decididos, Nadir chegou a São Miguel há 28 anos para estudar. Nunca mais deixou o lugar. A coordenadora do Centro de Cultura Missioneira devotou sua vida ao tema e fala apaixonadamente sobre o sistema político que envolvia a igreja que se ergue imponente ao fundo da praça. Ela aponta o museu. “Lá ficava o Cabildo, a sede administrativa da redução, uma espécie de prefeitura cuja gestão era feita pelos índios”, diz.

Passar pela sua porta principal da igreja é voltar ao século 17, quando o território era espanhol devido ao Tratado de Tordesilhas. Para ocupá-lo e catequisar os guaranis da bacia do Prata, padres jesuítas ergueram ao longo dos séculos 30 reduções.

Nadir é ativa na ajuda aos guaranis remanescentes do Estado, alguns dos quais vendem ao redor do museu seu belo artesanato, como as esculturas em madeira de quatis típicas da região. Silenciosos e com blusas de frio que já viram épocas melhores, eles são a triste herança da guerra guaranítica iniciada pouco depois do Tratado de Madri, de 1750, quando Portugal reclamou as terras para si. Só as terras, sem os padres nem os índios nelas.

O brado do líder guarani, Sepé Tiaraju, “essa terra tem dono”, não foi suficiente para espantar as tropas luso-espanholas. Nem o grito dos 30 mil índios que viviam nos Sete Povos. O espetáculo Som e Luz, exibido diariamente às 19h (no verão às 21h) desde 1978, permite intuir o massacre sofrido pelas populações que habitavam o local. Mais explícito e igualmente belo, o filme hollywoodiano As Missões, de 1986, com Jeremy Irons e Robert de Niro, também.

Ao fim do espetáculo de 40 minutos, os integrantes da expedição caminham silenciosamente de volta para o ônibus. As palavras são desnecessárias.

Fotos e texto: Monica Martinez

Um comentário:

  1. Salve, Mônica! Descobri seu blog por acaso e fiquei contente com o que vi. Assim como você, tenho muito interesse em narrativas de viagem, tanto que criei um blog sobre essa temática há poucos meses. Fiz um mestrado sobre a literatura odepórica produzida pelos peregrinos brasileiros no Caminho de Santiago, priorizando o aspecto espiritual da jornada. Agora tenho mergulhado em inúmeras leituras por conta do blog, e com isso estou descobrindo alguns autores e estudiosos muito interessantes que levam esse gênero a sério.Um deles, Pico Iyer, que você resenhou em outro site (Open Road). Gostei da matéria sobre as Missões,haverá continuação? Você conhece o Caminho das Missões? Bueno, passarei sempre por aqui para acompanhar o seu blog. Se tiver vontade, veja o que tenho feito no meu, quem sabe possamos trocar umas figurinhas, não?
    http://odeporica.blogspot.com
    Saludos,
    paulocésare

    ResponderExcluir