quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Narrativa de Viagem: Serras capixabas

Boa tarde, diz o nonno, postado na entrada da lojinha de madeira da Fazenda Carnielli, uma das pioneiras no agroturismo da região serrana do Espírito Santo. Cerca de 1,70m, corpo rijo e forte, sorriso iluminado pelo bigode branco, ele veste calça de brim escura, camisa de mangas curtas e boina que permite ver as têmporas grisalhas.
— O senhor é um Carnielli, certo?
— Certo — diz, sorrindo com a pergunta.
— Quantos anos o senhor tem?
— Oitenta e due.
— Oitenta e dois?
— Isso.

O diálogo serve como um aperitivo para seu Domingos, que deslancha a falar sobre sua família. Nascido em 1926, ele é a primeiro das três gerações de Carnielli nascidas no Brasil até agora. Para ilustrar sua história, seu Domingos aponta a parede à sua frente, onde estão fotografias em molduras ovais esculpidas outrora em madeira. Na parte mais alta está seu pai, Francisco, ao lado da esposa, Ângela Destéfani. Ao lado, numa fotografia esmaecida pelo tempo, está imortalizado um senhor sentado, que segura uma espingarda. Trata-se do patriarca dos Carnielli. Em companhia do irmão Giovanni, nos idos de 1888, Domenico deixou o sobrado em Conegliano, na província de Treviso, no Vêneto, região do norte da Itália, e partiu para o Brasil. Como tantos outros, vinha em busca de melhores condições de vida.

Ao chegar ao Espírito Santo, Domenico se estabeleceu em São Pedro do Araguaia, hoje Alfredo Chaves. A princípio, trabalhou na construção da estrada de ferro, casou com Vitória Caliman e, assim que pôde, como vários conterrâneos que haviam se instalado em Araguaia, Matilde e Alfredo Chaves, juntou suas suadas economias para comprar um lote de terra com solos mais férteis. Por seis contos e 100 mil réis, adquiriu a atual fazenda Carnielli em Venda Nova do Imigrante, localizada desde 1891 a 103 km de Vitória, a capital do Espírito Santo. No século 19, a região serrana capixaba, propícias ao plantio de café, era composta por grandes fazendas, boa parte abandonadas pelos portugueses que não conseguiram tocar seus negócios após o fim da escravidão, em 1888.


Animados pelo bom clima, pela água potável e caça abundantes, os italianos abriram pastos, semearam grãos — milho, arroz e feijão —, plantaram cana. Nos currais, as vacas garantiam o leite, logo transformado em queijo. Nos cercados, porcos supriam a carne do cardápio e as galinhas os ovos das quitandas.

Foi somente em 1993 que os descendentes dos pioneiros descobriram que a lida com o dia-a-dia era um atrativo turístico. Sob chancela do Programa do Agroturismo, com o apoio das Secretarias Estaduais do Desenvolvimento Econômico (Sedes) da Agricultura (SEAG) em parceria com o Serviço de Apoio à Micro e Pequena Empresa (Sebrae – ES), a Fazenda Carnielli abriu as porteiras e começou a implantação do agroturismo no Estado. A inspiração foi buscada na Itália: uma comitiva de 12 produtores de Venda Nova do Imigrante e de Domingos Martins foi àquele país para conhecer o programa italiano de Agriturismo.

Encostado no balcão, enquanto os netos oferecem aos clientes degustação de queijos maturados como o resteia italiano e o morbier francês, este com veios de cinzas, o nonno fala com entusiasmo de seu primeiro presente: uma enxada.

— Meu pai saiu com ela de manhã para arar o campo — conta. O trabalho era todo feito pelos membros da família, como boa parte ainda o é atualmente. — Foi só quando ele voltou da roça que me deu a enxada.

Quando fez 54 anos, em 1980, Seu Domingos e esposa, Enedita Zorzal, assumiram os negócios da família. Foi apoiado pelos dez filhos, dentre eles quatro estão hoje à frente dos negócios (Leandro, Antônio, Pedro e Danilo).

Implantar a fazenda não foi fácil. Como podia se tornar um caminho escuso para escoar o ouro das capitanias reais das Minas Gerais, o Espírito Santo teve a construção de estradas proibidas até a independência do país de Portugal, em 1822. Chegar ao local hoje é fácil, por meio da BR-262, que serpenteia as colinas verdes da região. No século 19, o ir e vir não era simples nem rápido. Tanto que na época as professoras que lecionavam para os alunos da região hospedavam-se na fazenda Carnielli.

O café plantado na propriedade continua bom. Uma máquina de expresso tira xícaras fumegantes do arábica cereja descascado, bebida fina que leva o nome da fazenda. Leandro, filho de Domingos, se aproxima da gôndola que exibe os pacotes do pó negro. Mais alto que o pai, mas com os mesmos olhos azuis, ele tem cabelo cortado rente, rosto anguloso e um quê do ator norte-americano Paul Newman.

— Experimente levar este aqui — sugere Leandro, apontando para o pacote que leva seu sobrenome e que contém o seu melhor produto. Afinal, o café ainda é o carro-chefe da região.
À semelhança do pai, Leandro se empolga e começa a falar sobre seu assunto favorito: o agroturismo. Não por acaso, ele é presidente da Agrotures, a Associação de Agroturismo do Estado do Espírito Santo.

Leandro aponta três questões fundamentais em agroturismo. A primeira é a cultural. Ele se refere ao fato de que os produtos vendidos na região são de raiz, isto é, são realmente feitos pelos descendentes de imigrantes que produziam os alimentos dentro de suas propriedades, já que havia pouquíssimas casas de comércio na região e o dinheiro também era um artigo escasso. O jeito era a auto-sustentabilidade: os proprietários faziam os pães, trituravam o fubá em moinhos de pedra a partir do milho plantado no local, preparavam a massa do macarrão. Daí as receitas terem sido testadas e aprovadas ao longo de gerações. É o caso do socol (do italiano ossocolo, que no dialeto vêneto significa pescoço), delicioso embutido que no Brasil passou a ser feito com lombo suíno.
O segundo pilar do agroturismo é a gastronomia. Quem volta de viagem conta histórias do que deu certo e não deu certo e relata também os pratos diferentes que experimentou – ou não ousou fazê-lo!

Finalmente, o terceiro ponto forte do agroturismo é o ecológico. Por uma questão das políticas imperiais e das medidas adotadas recentemente, como a criação de áreas de proteção ambiental, o Estado guardou muito do seu verde. Nesse sentido, exibe uma forma bastante interessante de co-existência humana com a natureza. O que leve os turistas a não apenas a saírem das lojinhas carregados de quitutes, mas também a levarem na alma as belas vistas da terra.A combinação leva cerca de mil turistas a passar por semana na fazenda Carnielli, uma das 16 propriedades da rota do agroturismo capixaba (há 55 ao todo). O curioso é que o turista não tem noção dessa quantidade. Afinal, cada um se sente único ao ser acolhido pessoalmente pelos proprietários. Se a idéia é se sentir um no meio da multidão, a dica é curtir a Festa da Polenta. A mais esperada atração da cidade é realizada tradicionalmente no Centro de Eventos no segundo final de semana do mês. Apesar da farta quantidade de polenta, o prato é disputado e é bom chegar cedo ao local. “Ano passado nem consegui comer polenta”, brinca a simpática guia turística Izalete Armani, também ela descendente de italianos como sugere o sobrenome.


Monica Martinez

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